quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Oração à menina-santa




O espaço de adoração é um altar figurativo entalhado a fogo no córtex cerebral. Ali acendo uma vela à imagem dourada de sua pureza. Ao redor, nenhum mau pensamento ousa macular a lembrança do sol incidindo respeitoso na pele de seu corpo virginal. Não poderia ser diferente. À época, todo o meu ser concentrava-se em apenas contemplar o rosto de beleza angelical, que ficava ainda mais intensa sob o alterar constante das zonas de luzes e sombras do crepúsculo à beira-mar. O fulgor da adolescência. Ficamos no máximo do contato físico naquele dia: seus longos cabelos ao vento tocando levemente minha face. Fascínio mútuo, olhares de flerte, pipocas, jogos de cartas, passeios na praia. No triste adeus, a promessa de um reencontro jamais ocorrido, e um beijo casto enquanto segurava seus braços. Agora, ao reativar esta passagem, junto as mãos envelhecidas pelo tempo e rogo uma curta prece à menina-santa que velei durante aquela semana de um amor de verão: Aonde estiveres, protege estas memórias e faz com que nunca as esqueça, até o momento final em que tudo se apagar diante de meus olhos. Amém!



quarta-feira, 31 de outubro de 2012

A vacina




Para a Patrícia
Cheguei até ela doente de amor. O vírus já devastara meu coração, e o pouco da energia restante usava-a para manter a lucidez que falta aos apaixonados desiludidos. Estranha doença essa capaz de infligir tanta dor e levar à morte, mas que, sob controle, ninguém pode viver sem — e dizer-se feliz. Seu tratamento não é fácil, exige esforço e o uso contínuo de uma espécie de vacina: o próprio vírus modificado. “Só o amor cura o mal causado pelo amor”, disse ela sussurrando-me ao ouvido. Depois de vários anos, suas palavras ainda ressoam verdadeiras, pois assim se fez. Manhãs de inapetência: afeto e tolerância. Tardes febris: música e mútuo conhecimento. Noites delirantes: carinho e poesia. E o tempo... Tive a sorte de encontrá-la. A convalescença me ensinou: todos nós carregamos o vírus e a capacidade de infectar. Somente algumas pessoas, no entanto, desenvolvem a vacina e o dom da cura. Agora, enquanto escrevo, pelo reflexo da tela do computador, vejo sua chegada. Sinto uma respiração quente, o envolver carinhoso de seus braços, e o pressionar dos lábios em minha nuca. É ela a me administrar mais uma dose de seu remédio salvador.



terça-feira, 23 de outubro de 2012

A meiga face da guerreira





Para minha irmã Sandra
Em meu estranho sonho vejo a guerreira que chega cansada em sua fortaleza, à noite. Os problemas enfrentados com bravura, uma nova jornada vencida, e o reconfortante sentimento do dever cumprido. Ela começa a desfazer-se lentamente de sua robusta armadura. Ao final, resta-lhe apenas o elmo a proteger a cabeça. A retirada da última peça revela um rosto radiante, belo, e que reconheço. Guarda as feições da menina de minha adolescência, a pequena irmã promotora de chás e desfiles de bonecas que movimentavam crianças e adultos do prédio onde morávamos. Traz ainda o mesmo traço desafiador da jovem noiva que, em nome do amor, entrou na igreja sem o pai — contrário ao casamento. Sim, não tenho dúvida, é ela, a mãe que longe do ex-marido cria com dificuldades, mas de maneira honrada e corajosa, as duas filhas pequenas; a amiga de uma centena de amigos que a adoram; a irmã que todas as irmãs acorrem nos momentos difíceis. Aquela cujo olhar e as palavras de esperança me acalmam, quando estou perdido. Agora, seu corpo revestido por feixes de músculos (a armadura natural) deita e descansa. No meu sonho me emociono, então, vendo a imagem paradoxal da meiga-menina-guerreira recuperando as energias para mais um dia de batalha.



terça-feira, 2 de outubro de 2012

A árvore da Vida




Para a Isadora (no futuro)
 
É o fim? Não chores sobre o que já não sou. Te peço somente que me enterres no alto daquela colina. Uma cova de pouca profundidade, para assentar o meu corpo na terra crua. Não quero moedas nos olhos para o barqueiro, apenas uma semente de figueira na mão fechada. Um último adeus, punhados de terra, nenhuma lápide, e que me leves no coração. Do resto, a natureza se encarrega. A chuva, o sol, os nutrientes da decomposição, a semente.

Se tiveres muitas saudades, visita-me. Aceitarei de bom grado algumas lágrimas tuas a irrigar o solo onde germino. Assim como estendi a mão para te erguer nos primeiros passos, ajuda-me agora a ficar em pé e resistir às tempestades, cravando uma guia de madeira no qual possa crescer amparado, nos primeiros anos.

Quando voltares, já poderei te oferecer uma sombra. Finalmente conseguirás observar e entender a calma do mundo através de mim. Deitada na grama verde, verás, por entre as folhas, as nuvens levadas pelo vento. E se o tempo não permitir erguer meus netos, amarra um balanço nos fortes galhos, e deixa-os brincar comigo.

Sob a minha copa, quero que promovas piqueniques, contemples o pôr do sol, caces vaga-lumes. Coisas que nunca fiz contigo alegando tantos motivos. Traz os teus problemas e conta-os baixinho, abraçada ao meu tronco. Te ouvirei atentamente, enquanto renovo o ar que tu respiras. Me ajuda a ser aquilo que eu não soube ser. Me transforma naquilo que não pode mais causar mágoas e dores. Não mais eu, nem eu-árvore, eu como parte de tudo. Não minha filha, não é o fim! Talvez o começo.



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