Volto aos lugares
da infância. Da casa
dos primeiros anos
restam somente algumas paredes
de madeira sobre
a cozinha de azulejos
brancos. A despensa
com os mantimentos,
e o cheiro inconfundível
da mistura de farinhas
e arroz, permanecem. Minha avó se foi. Vi apenas
o menino com
sarampo, afastado da escola, e aprendendo a ler com as revistas
de histórias em
quadrinhos. Encostado na beirada do já não ameaçador poço artesiano, me acena — na mão,
um corte e a tentativa de estancar o sangue com um curativo
recheado de pó de café.
O imponente
colégio transformou-se em mais uma escola e Faculdade.
Acabaram com o meu
bosque particular.
A alameda de frondosas árvores não passa agora de um acesso
asfaltado, com uma guarita
de segurança a fim
de controlar a entrada
dos alunos. Ao longe,
vejo novamente o garoto
tímido sentado num banco
do pátio, com
as mãos nos
joelhos. Solitário
e envergonhado. Abanei para ele,
mas cabisbaixo
não notou minha
presença.
Nos muros externos
do grupo escolar,
as pinturas de bandeiras
de diversos países
deram lugar às pichações
de símbolos incompreensíveis.
Outrora bem
conservado, sobrevive hoje no abandono. Na quadra
de esportes esburacada, a bola tem dificuldades
para rolar, e as crianças não parecem
tão felizes.
Do lado oposto
do pátio interno, enxergo outra vez o menino. Ele beija delicadamente
a testa de sua
namoradinha de turma, que
chora por
ter machucado
a cabeça numa queda
durante o recreio.
Seu olhar me encontra e
pede aprovação pelo
ousado ato.
Sorrio numa resposta afirmativa.
A ladeira deixou
de ser assustadoramente íngreme.
Acho que o tempo
tratou de aplainar a pequena
montanha urbana,
ainda serpenteada pela
rua coberta
de paralelepípedos. Dos adultos que caminhavam por
ali, nenhum
apresentou qualquer leve
semelhança física
com os amigos
das peladas vespertinas improvisadas no que sobrou de grama
do campo de futebol
do bairro. Subi um pouco da lomba, e vi
o mesmo menino
de antes cruzar
por mim,
montado numa bicicleta
descontrolada. Em desespero
descia a colina, tentando domar
o veículo em
disparada e sem
freios. Atrás
dele um garoto
maior corria preocupado,
gritando por seu
nome. Ele
o alcança no sopé, quando
os dois então
conversam entre choro
e gargalhadas. Também
não consigo
conter o riso,
assim como
uma única lágrima.
Viajante imóvel do passado,
vejo o pequeno mundo
meu — maior.
Se à primeira vista
tudo me
parece menor entre
tristezas, distâncias,
tamanhos e velocidades,
rever aquele menino permanecendo intocável
em sua
honestidade, confere uma nova dimensão
de grandeza a estes
acontecimentos de minha
vida. Eles
desmentem o que eu
dava como definitivamente
perdido: sim, o menino
vive, e ainda há esperança.