sábado, 3 de março de 2012

O Paraíso era ali



Repetia a operação de guerra algumas vezes durante a semana. Pulava o muro, subornava a cadela com um carinho — obtinha o desejado silêncio — e seguia na pouca luz lendo em braile as imperfeições do reboco das paredes que me conduziam à porta dos fundos de sua casa. O código secreto das batidas na madeira funcionava, e ela surgia iluminada. O medo da noite, então, desaparecia. Pé por pé, me guiava pela mão até seu quarto. No andar acima a mãe dormia, ignorando a única presença masculina por anos, naquele lar incompleto. Depois de fechar a porta com cuidado, a cama de solteiro ali instalada reconhecia a nossa presença. Pequena e estreita, parecia mais do que adequada ao propósito: a fusão de dois corpos enamorados. Em seus braços, lembro de nunca ter me sentido tão seguro. Ao repousar cansado sobre sua carne macia e branca, esquecia até de quem realmente era. Um amor que não me enchia de esperança — sentimento que pouco alimentava à época. O que vivíamos ali era tudo, e assim podia acabar, pois seria o melhor final. E quando à noite chovia, e eu acreditava que as gotas batendo forte no vidro da janela eram as lágrimas de dor e tristeza do Mundo, meu corpo buscava o paraíso de seu delta e nada mais importava. Ela dormia, e eu, tranquilo, sorriso nos lábios, ouvia distante os primeiros acordes das trombetas a anunciarem o Apocalipse.


sexta-feira, 2 de março de 2012

Perdido em mim mesmo

É mais uma madrugada de insônia nas trevas e no frio da própria casa iluminada e aquecida. Perdido, vago nu pelos cômodos em busca do outro eu. Aquele que imagino ser. Esbarrando entre dúvidas e móveis, sigo a angustiada jornada de procura tendo como único companheiro o cúmplice silêncio dos que dormem. O tato me serve de cão-guia. Mesmo com as extremidades dos dedos enrijecidas pelo gelo do tempo, reconheço os retratos nas paredes do escritório. As fotos familiares tentam me fornecer algum conforto. Tomada de lembranças efêmeras, a mente recorda os instantâneos feitos ao longo dos anos. Pareço ouvir as vozes daqueles momentos. O choro da filha ao nascer, o último adeus do pai doente, o irmão que ressente a distância, o amor pronunciado como um mantra pela esposa. Os sons querem indicar a provável resposta à incerteza de minha identidade, mas não possuem a força necessária para tanto. O esforço me extenua, e debilitado pelo frio, passo ao quarto onde um foco de calor me atrai. Como um farol, é ele que orienta agora meus passos até a cama na qual deito ao lado dela, a fonte da energia. Suspendo a busca e estendo a mão, antevendo a mão que já me espera acolhedora. Ela fecha-se sobre a minha e me conduz a um repouso pacífico de poucas horas. O vento lá fora uiva assustador ao dobrar a esquina. Aqui dentro, a dúvida persiste, adormecida por mais uma noite.


quinta-feira, 1 de março de 2012

Mondo cane


Com os anos, a recepção festiva deu vez ao olhar contemplativo. Os latidos e a correria por um simples afago deixaram de fazer parte de seu dia a dia canino. Agora, sinto-me apenas observado ao chegar em casa. Da garagem até a porta de entrada ela me acompanha com solidária tristeza, como a compreender o difícil momento que vivo. Interrompo o trajeto e lhe devolvo igual olhar. Por segundos não quantificados ficamos assim, imóveis, nos avaliando mutuamente. Noto os fios brancos dominarem pontos da pelagem outrora preta; as articulações desgastadas pela sobrecarga do peso físico e temporal; os olhos cansados de verem através das grades que limitam o seu mesmo-pequeno-mundo. Compadecidos, são eles que persistem a me mirar, parecem penetrar em minha alma e varrer o meu íntimo à procura do que fui, do outro eu. Terá feito ela idêntica leitura? A cumplicidade homem-cão é renovada. Com carinho passo a mão em sua velha cabeça, e a vejo andar em círculos antes de se deitar. Entro em casa, e perdido em mim, também ando em círculos, antes de dormir. Obrigado Nikita.
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