sexta-feira, 27 de julho de 2012

Um salto no escuro



Deitados na cama, frente a frente. Ela fala de um medo de infância. Eu retribuo narrando um episódio cômico de quando era menino. Rimos juntos, revelando uma cumplicidade crescente. A paz me invande, e o sentimento inebriante da felicidade passageira se instala. Predomina um breve silêncio. Olho nos seus olhos e tenho que me conter. O desejo é mergulhar neles, penetrar em sua essência, descobrir as razões das longas pausas, decifrar os motivos da aparente (às vezes) doce melancolia, encontrar o local onde nasce a fonte de sua coragem. A mesma que me falta agora. Temo afogar-me naquele mar profundo, cair sem fim na espiral do redemoinho que ela nem imagina haver ali dentro. Fecho os olhos e decido por outro salto. Pulo suave sobre o seu corpo. É mais seguro.



quinta-feira, 19 de julho de 2012

A mais bela canção



Para minha Patrícia
Sou o músico imaginário. O virtuose de um único instrumento: o teu violoncelo. Autodidata, com o tempo aprendi a tocar-te à perfeição. Seguro o corpo sinuoso entre as pernas, o braço apoiado em meu ombro, e enquanto os dedos marcam a passagem das notas, o arco desliza rente às cordas tesas descobrindo os mais provocativos timbres. Aqui, um sustenido de prazer. Ali, um agudo gemido. A melodia jamais se repete, pois não consigo entender a complexa partitura emotiva que produzimos. De nossas melhores audições, lembro aquela do verão na praia isolada, cuja faixa de areia era coberta de pequenas conchas marinhas. O cenário acústico ideal para reverberar o som do teu corpo. Nas pedras, com o mar batendo forte, e sob o sol escaldante, criamos a ópera da paixão, tendo como plateia peixes e golfinhos atentos. Ainda sonho em compor música e letra que expressem a intensidade de nossa relação. Talvez a finalize no dia em que dominar o maremoto de meus sentimentos, e possa caminhar sem medo sobre as águas turvas que insistem em me afogar. Idealizo a mais bela canção, a que será adotada como hino pelos arcanjos mensageiros, e entendida por todas as línguas da Terra. Um mantra-tango-rock-erudito que afirme: não há vida sem amor. Meu amor por ti, violoncelo.



quarta-feira, 11 de julho de 2012

Tristeza amiga


Ouço batidas à porta, enquanto observo solitário pela janela da sala o entardecer tardio dos primeiros dias de verão. Tudo parece ser motivo de felicidade naquele domingo tranquilo, mas abro a porta e me deparo com a senhora Tristeza. A visita mais indesejada por todos, temida pelos eternos alegres, os festeiros de plantão, os tolos, e os ignorantes. Para mim, no entanto, ela já é uma velha conhecida. Mais do que isso: uma amiga íntima, que ritualiza as batidas como mera formalidade, exigida por sua milenar educação. A etiqueta impõe, e eu retribuo. Cordialmente a convido para entrar e acomodar-se. A silhueta elegante desfila pelo ambiente em seus trajes cinza, ao mesmo tempo em que espalha um perfume melancólico no ar. Senta-se, então, na minha poltrona favorita. Acomodo-me no sofá, distante alguns metros, quando admiro com calma novamente o seu rosto. Poucos sabem, mas a Tristeza é bela. Dotada de uma face de traços suaves, quase angelicais, pele alva, cabelos e olhos negros como noite sem estrelas — não aparenta a idade que tem. Diria que possui uma beleza amedrontadora que requer, de mim, um respeito capaz de impedir qualquer olhar de desejo. Nossa relação tem papéis bem definidos, e que passam longe do amor ou da paixão. Sempre a tratei, desde a minha infância, com a dignidade que merece. Jamais lhe virei o rosto na rua, ou fingi não reconhecê-la diante das situações mais corriqueiras. Nunca lhe dei as costas ou corri a me esconder numa noite festiva de amanhecer vazio. Ela, por sua vez, talvez encantada com o tratamento, me ensinou a ver o mundo de outra forma. Naquele início de noite conversamos sobre assuntos atuais, assistimos TV (rindo e chorando com uma tragicomédia), e fizemos silêncio ao ouvir algumas canções de Jens Lekman. Duas horas depois, afirmando compromissos, ela pede licença para se retirar. Digo que não preciso acompanhá-la até a porta, sempre aberta às suas visitas. A Tristeza me sorri agradecida. Ao sair, peço a gentileza de não fechar a porta, pois sinto que sua irmã, a Alegria, já se aproxima para me confirmar que, na vida, tudo tem o seu momento.


sexta-feira, 6 de julho de 2012

Eu no espelho


A sonolência daquela manhã de inverno é espantada pela água fria que as mãos em concha jogam no meu rosto. Ela me desperta também para outra realidade. Diante do espelho do banheiro deparo, perplexo, com um sujeito que desconheço. Não era o olhar recíproco, o causador da estranheza. Tampouco a rápida convicção de que as marcas do tempo realmente tinham chegado àquela face cansada. Permaneci imóvel alguns minutos assim: contemplando, e sendo contemplado. A figura melancólica e atormentada à minha frente era eu, sem dúvida. Mas que diabos era eu, que nem o próprio reflexo reconhecia? Pensei, então, que poderia ter flagrado uma das imagens do eu projetadas em mim, pelos outros. Corresponderia a qual verdade, a imagem feita de mim por minha família, por exemplo? Não seria a mesma desenhada por meus amigos, por sua vez diferente daquela criada pelas pessoas onde trabalho. Seria apenas um eu, de múltiplas imagens? Teria, num descuido de sonolenta imagem invertida, reflexo de espelho, visualizado uma destas projeções? E o mais assustador de tudo, descobrir ser ela tão diferente da imagem que tenho de mim mesmo? Trinta segundos com o rosto mergulhado na pequena piscina formada na pia pela torneira aberta, me devolvem ao mundo dos normais. Volto a defrontar-me com a figura refletida. Agora sim, um esboço de sorriso e a tímida esperança nos olhos, conferem com a imagem adequada para enfrentar mais um dia burocrático dentro da pequena vida prosaica.


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