sábado, 29 de junho de 2013

Indelével tatuagem


Apesar daquelas quatro paredes novamente encerrarem interesses distintos, chegara o momento da verdade que mudaria nossas juventudes. Ali, onde todas as diferenças ficavam esquecidas, e os temores concediam trégua para alguns minutos de volúpia. Eu estava vivo em seu ser. Ela, sobre mim, em movimentos frenéticos. Corpo erguido a mostrar uma pelve sem pelos, um abdome levemente desenhado e seios perfeitos para o encaixe de minhas mãos. Evitava a sua face, absorto naquela imagem. A respiração mais ofegante e um gemido diferente fizeram-me desviar o olhar até ela. Acredito ter experimentado minha primeira epifania. Seu rosto de traços delicados me pareceu mais lindo que o habitual, radiante. Os cabelos moviam-se em ondas, acompanhando o ritmo que iniciava no ventre e terminava num suave balançar de cabeça. Fiquei extasiado com a cena. Percebi, então, o teto do quarto abrir-se lentamente, como um imenso portal. Sua silhueta recorta um céu dominado pelo brilho de milhares de estrelas. No peito cintila, num escarlate pulsante, a tatuagem em forma de coração que adornava sua pele. Foi quando notei que ela levitava, alçada pelas asas dos pequenos pássaros da nova arte a marcar seu dorso. Um pouco abaixo dos ombros, uma faixa carregada por andorinhas; ao centro, um diamante disputa o brilho com uma coroa real, logo acima. Seu corpo transmudado saía de seu corpo físico. Num voo frágil, ela parecia feliz à medida que se afastava de tudo: do pecado, da dor, do medo, das incertezas do futuro, dos desígnios do presente que escolhera. E eu, ali, congelado no tempo e no espaço, ainda vivo, cego pela visão, tateava o restante de sua matéria. Terminei por me desconectar, incrédulo pelo que presenciara. Parte do meu corpo ali morria, para logo depois ressuscitar por ela outra vez.




sábado, 15 de junho de 2013

O sal do tempo


Ocupávamos os habituais lugares, próximos à janela do térreo — ali penetrava a pouca luz natural daquele dia nublado. O peso do céu cinza, de tonalidade chumbo, parecia achatar ainda mais a desgastada relação prestes a completar duas décadas. Fizemos o mesmo pedido ao conhecido garçom no restaurante de sempre. Em silêncio, apreciávamos a culinária indiana com a lentidão requerida. Depois de alguns minutos, enquanto degustava uma samosa, ela dispara a falar algo já dito duas dezenas de vezes de maneiras diferentes. Alheio à sua voz, me detive a percorrer com o olhar o seu rosto. Teria ali um resquício de admiração por mim? Consegui apenas ver os traços belos e levemente exóticos que me encantaram na juventude. Insisti na procura, mas sem resultado. As decepções causadas, as dores impostas, e tantas outras frustrações, creio terem lhe roubado todo o brilho que eu produzia em seus olhos — e aquilo estava acabando com o nosso amor. 

Ao achar ter obtido a resposta à dúvida, o ambiente pareceu-me ficar mais escuro. O olhar agora perdido passou a buscar algo no que ancorá-lo. Ele para no jardim interno do estabelecimento. Minimalista, sem plantas, com pedriscos brancos no chão, esculturas de ferro e uma fonte de água. No meio daquela aridez, a pequena hera lutando para nascer na falha do concreto lateral. Não deveria estar ali, mas contrariando tudo, estava. A resistência da frágil haste verde naquele cenário desolador para mim, me consumiu em reflexões sobre o momento crucial que eu vivia. 

O aviso de que ela iria ao toalete, e seu pedido para a solicitação da conta, me trouxeram de volta. Foi quando percebi na mesa, o saleiro. Seu estranho formato lembrava vagamente uma ampulheta. Me propus então a um jogo insano e completamente fora do meu imperativo racionalismo. Viraria o saleiro/ampulheta na toalha da mesa. Se ela não retornasse do banheiro a tempo, antes que o último grão caísse, partiria sem dizer adeus — para nunca mais. O relógio escoou o sal/areia rapidamente, mas não o suficiente para impedir o turbilhão de sentimentos que me assolou naqueles breves segundos. Ela voltou. E junto, um sorriso. O mais lindo, o mais admirável, o mais verdadeiro e necessário para aquele momento. A mão estendida, e o convite para partirmos. Segurei-a e me deixei levar. O amor resistente como a hera. Na mesa ficaram a nota do cartão de crédito, o sal do tempo, as dúvidas de um jogo que jamais apontaria um vencedor.




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