quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Azimute 95º


Para a pequena Isa
Amava-a mesmo sem nunca tê-la visto. Na noite de 2 de outubro de 1995, surgiu radiante detrás de um aparato de panos, como cortinas de um grande teatro. O espetáculo se iniciava para ela. Erguida à luz pelas mãos do médico, chorou como deveria chorar: assustada. O silêncio se fez ao trocarmos um breve e terno olhar. Ali tive a certeza de que nada mais seria igual, tudo começava a ganhar sentido. Meu destino estaria ligado para sempre a ela, a metade de mim que permanecerá, o azimute 95º. Hoje, nos piores momentos, quando perdido e sem forças me arrasto pelos escuros desertos, lanço mão da bússola interna e miro o horizonte. O coração aponta o rumo correto: Norte, 95º. O caminho seguro de casa. É lá que encontro você, pequenos olhos castanhos que crescem a cada dia absorvendo o mundo que se apresenta ambiguamente maravilhoso e cruel. Já não me importa o céu sem estrelas, ou a ausência do sol encoberto pelas densas nuvens negras da tempestade que se avizinha. Você é a minha referência natural. Penso nisso e deixo a paz me invadir. 

Obs.: Azimute é uma medida angular que dá a direção de um ponto localizado sobre o horizonte, ou de um objeto no céu.


terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

O impronunciável


Seis letras: três vogais e três consoantes. Embora a inegável intimidade, ela não se permitia pronunciar o meu nome. Ria, conversava, beijava e fazia amor, evitando sempre disparar aquela simples combinação silábica. Temia, quem sabe, conjurar a palavra secreta que abriria sem ressalvas o seu coração, tornando-me o único e eterno ocupante daquele anelado espaço. Foram meses procurando ouvir sua voz me chamar por qualquer motivo, o mais tolo que fosse. Me bastaria um grito de raiva, um sussurro de prazer, um sibilar descuidado. Tempo perdido. Algo inexplicável travava sua língua e a impedia de articular os precisos fonemas. A dor suplantou o amor, e o derradeiro encontro teve a marca do choro contido e uma dupla surpreendente decisão. Estávamos abraçados na despedida, e enquanto ela falava, pressenti o que viria. No exato instante em que se preparava para finalmente quebrar o encanto, encostei a boca entreaberta na sua. Beijei-a suave e num encaixe perfeito, de tal maneira que a tão aguardada palavra foi dita, mas lida apenas pelos meus lábios. O som não se propagou no recinto. Sem deixar escapar uma única letra, meu nome foi antropofagicamente mastigado e deglutido por mim em meio à mistura de nossas salivas. Jamais ouvi de novo sua voz. Saí fortalecido ao compreender que a intensidade daquele sentimento estava na magia do impronunciável de meu nome.


domingo, 26 de fevereiro de 2012

Chico: longa espera noite adentro


O felino aguarda sua dona no conforto acolhedor do quarto à meia-luz. Já é tarde da noite e Chico, o gato, permanece há algum tempo estirado sobre a cama. Os dedos de Morfeu custam-lhe a tocar as têmporas. Ao redor, o ambiente do aposento obedece a uma desorganização própria: cada coisa está desarrumada em seu devido lugar. Chama atenção sua foto emoldurando um porta-retratos no espaço nobre da cômoda.

Aos poucos ele vai se acostumando à nova rotina da menina-mulher. Esperar, sem saber seu paradeiro ou horário de retorno, é o que lhe resta. Resignado, se dá por satisfeito só ao imaginar as carícias e afagos a receber assim que ela ultrapassar a porta que os olhos semicerrados fitam. As mãos quentes em seu pelo, o salto planejado em cima do colo macio... O ninho aconchegante formado por suas pernas.

Algo, contudo, o deixa preocupado: a menina-mulher não é mais a mesma. O corpo de desenho adolescente traz agora odores alheios, imperceptíveis ao olfato humano. Já o faro de gato aponta uma mistura do suave perfume usual com o cheiro de outros corpos. Uma mistura que a simples água insiste em não retirar por completo dos poros. A alma também parece menor, como a faltar-lhe pedaços. A sensibilidade felina apreende a modificação. A condição animal lhe impossibilita a ajuda.

O rangido tradicional das portas indica a chegada. Tudo o que havia imaginado acontece. Aos pés da cama, Chico dorme feliz, zelando por instantes o sono de sua dona.




sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

A lua prateada e os seis rios


No céu “a lua vem surgindo cor de prata, no alto da montanha verdejante”, diz a letra da canção que se ouve ao fundo, enquanto seis crianças correm e brincam felizes à noite, nas areias quentes da tranquila praia doce. O astro noturno parece entender a música e empresta toda a sua luz para eternizar a beleza daquele momento. Enorme como o sol, e amparado no firmamento por algumas poucas nuvens, ele provoca os múltiplos reflexos no espelho d’água constantemente agitado pelos pequenos pés que não cansam de se refrescar. Os risos emitidos se confundem com o barulho das marolas que quebram na prainha, somam-se à música e formam um novo som definindo a alegria de estarem vivos e juntos, apesar de todas as agruras. São seis irmãos, seis rios. O destino lhes reservaria caminhos diferentes no futuro: corredeiras, quedas, remansos, piracemas, bifurcações, novos riachos. Rios que nunca, porém, deixaram de viajar paralelos e entrecruzados, alimentando-se em épocas de seca, dando vazão em períodos de cheias. Aquela noite enluarada na infância marcou o imaginário de cada um, e ainda hoje serve para acalmar a amedrontadora revolta da correnteza em dias de tempestade. União de duas fontes, água da mesma água, suas histórias conjuntas só terminarão quando desaguarem no grande mar.


segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Feliz ponto de vista

Para minha Patrícia
Tarde de amor incendiada por uma conversa cultural. Colher tomates-cerejas na horta orgânica e prepará-los para o jantar a dois. O banho na cachoeira deserta. Deitar-se nas pedras quentes da margem do rio, e juntos dar nomes divertidos às estranhas formas das nuvens que navegam no imenso teto azul do verão. Mergulharmos os pés na correnteza, onde a água leva parte de nós para nunca mais voltar, tal como a vida. Cantar e dançar para ti, enquanto cozinhas. Rirmos ao beber vinho. Na cama, à noite, pela janela do quarto, ver o encanto da lua cheia iluminar a copa das árvores em todo o vale. Emocionar-nos com o solitário vaga-lume querendo ser a mais nova estrela do céu. E por fim, sentir o absoluto silêncio rivalizar com a orquestra de grilos na mata, compondo a sinfonia noturna que embalará o nosso sono. Despidos de roupas e qualquer preocupação, dormimos abraçados, cientes da temporalidade daquela fugaz passagem. Tudo muito simples, muito fácil, ao alcance de todos. A felicidade é apenas uma questão de perspectiva. Somente um ponto de vista.



sábado, 18 de fevereiro de 2012

Piratas mentais


Para a Patrícia
Sinto uma forte dor na cabeça, uma pontada. É a âncora do navio pirata em minha mente. Ela é içada, e após breve descanso, a embarcação parte novamente para navegar destemida entre os mares dos sulcos cerebrais, enquanto tremula no alto do mastro um pano preto com o desenho de minha caveira. Ouço o distante som das canções entoadas pela feliz tripulação. A alegria dos piratas mentais está nos saques que realizam durante a jornada. Eles vão pilhando memórias, roubando as boas lembranças, levando os bens mais preciosos. Conhecedores de meus oceanos, dispensam bússola e astrolábios, pois sabem localizar cada recordação valiosa. Não sei como enfrentá-los, na medida em que me sinto fraco, amargo, e sem referências. O alento reside num lugar secreto de meu cérebro, inacessível até mesmo para esses experientes marinheiros. A ilha, no lóbulo occipital, em que enterrei a arca onde venho acumulando o maior dos meus tesouros. Lá estão todas as nossas lembranças: desde a primeira vez que meus olhos te buscaram, até certamente a última vez que te verei antes que eles se fechem para sempre. Os piratas a procuram com afinco, e eu a guardo como derradeira resistência de sanidade.


sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Debaixo dos caracóis



Descobri o que poderia ser, caso não fosse este humano insignificante e triste. Enquanto alguns se imaginam cavalos selvagens, cães afáveis, gatos independentes, golfinhos alegres, tubarões predadores, guepardos velozes, hienas oportunistas, águias observadoras, leões soberanos, eu me vejo um caracol. Um pacífico e solitário molusco gastrópode. E, ao contrário do que muitos possam pensar, não me sentiria desonrado ou enojado por pertencer à família dos limacídios. Assim como seus integrantes, também me arrasto lentamente por aí, à procura de um lugar úmido, pouco luminoso e de certa aparência melancólica — o sonho de um pequeno jardim abandonado. Levo nas costas não uma concha-casa, mas uma concha-refúgio, à qual recorro nos momentos em que jogam sal sobre a pele fina e sensível. Nestas situações, “nós”, os caracóis, precisamos nos proteger na frágil couraça, a fim de não sucumbirmos desidratados pela perda de água e lágrimas. Ali ficamos, entocados e seguros. Uma segurança que beira a indiferença, e incomoda aqueles que não entendem e nos provocam, à espera da reação desejada: “O bicho tá vivo, ou morto?” E assim vamos seguindo: motivo de asco para alguns, iguaria gastronômica para outros, praga da lavoura para poucos. Escalando paredes, pedras e árvores, deixando um rastro que depois de seco torna-se brilhante e efêmero, após o cair da primeira leve chuva.


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