sábado, 15 de junho de 2013

O sal do tempo


Ocupávamos os habituais lugares, próximos à janela do térreo — ali penetrava a pouca luz natural daquele dia nublado. O peso do céu cinza, de tonalidade chumbo, parecia achatar ainda mais a desgastada relação prestes a completar duas décadas. Fizemos o mesmo pedido ao conhecido garçom no restaurante de sempre. Em silêncio, apreciávamos a culinária indiana com a lentidão requerida. Depois de alguns minutos, enquanto degustava uma samosa, ela dispara a falar algo já dito duas dezenas de vezes de maneiras diferentes. Alheio à sua voz, me detive a percorrer com o olhar o seu rosto. Teria ali um resquício de admiração por mim? Consegui apenas ver os traços belos e levemente exóticos que me encantaram na juventude. Insisti na procura, mas sem resultado. As decepções causadas, as dores impostas, e tantas outras frustrações, creio terem lhe roubado todo o brilho que eu produzia em seus olhos — e aquilo estava acabando com o nosso amor. 

Ao achar ter obtido a resposta à dúvida, o ambiente pareceu-me ficar mais escuro. O olhar agora perdido passou a buscar algo no que ancorá-lo. Ele para no jardim interno do estabelecimento. Minimalista, sem plantas, com pedriscos brancos no chão, esculturas de ferro e uma fonte de água. No meio daquela aridez, a pequena hera lutando para nascer na falha do concreto lateral. Não deveria estar ali, mas contrariando tudo, estava. A resistência da frágil haste verde naquele cenário desolador para mim, me consumiu em reflexões sobre o momento crucial que eu vivia. 

O aviso de que ela iria ao toalete, e seu pedido para a solicitação da conta, me trouxeram de volta. Foi quando percebi na mesa, o saleiro. Seu estranho formato lembrava vagamente uma ampulheta. Me propus então a um jogo insano e completamente fora do meu imperativo racionalismo. Viraria o saleiro/ampulheta na toalha da mesa. Se ela não retornasse do banheiro a tempo, antes que o último grão caísse, partiria sem dizer adeus — para nunca mais. O relógio escoou o sal/areia rapidamente, mas não o suficiente para impedir o turbilhão de sentimentos que me assolou naqueles breves segundos. Ela voltou. E junto, um sorriso. O mais lindo, o mais admirável, o mais verdadeiro e necessário para aquele momento. A mão estendida, e o convite para partirmos. Segurei-a e me deixei levar. O amor resistente como a hera. Na mesa ficaram a nota do cartão de crédito, o sal do tempo, as dúvidas de um jogo que jamais apontaria um vencedor.




Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe sua opinião, seja qual for. Muito obrigado.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...